No capítulo XI de Parerga e Paralipomena, intitulado Observações Adicionais sobre a Doutrina da Vaidade da Existência, Arthur Schopenhauer escreve:
Para o seu espanto, um homem repentinamente existe depois de incontáveis milhares de anos de não-existência e, depois de pouco tempo, passa a não existir por um período tão grande quanto. O coração diz que isso não pode estar certo [...] Nossa existência não tem fundamento para suportá-la que não seja o sempre fugaz e evanescente presente; o movimento constante é sua forma essencial, sem qualquer possibilidade do descanso ao qual ansiamos. [...] Neste mundo onde não há estabilidade de nenhum tipo — nenhum estado duradouro é possível, mas tudo está envolvido em rotação e mudança incansáveis, onde todos se apressam e se mantêm eretos na corda bamba, sempre avançando e se movendo — a felicidade não é sequer concebível.[1]
Estabilidade é aquilo que as pessoas buscam em Deus, mesmo aquelas que nem sequer entendem nada desses conceitos. A salvação que o pobre enganado busca ao dar parte do seu pequeno salário para o pastor nada mais é do que a estabilidade, a calma, a tranquilidade oceânica da pré-existência. A metafísica revelada do cristianismo, bastardeada pelas suas versões mercantis, provê esse alento para o fiel, ainda que temporariamente e de forma ilusória. Mas qualquer ilusão é melhor do que a realidade de que a sua vida é apenas trabalho, descanso e alguns prazeres mundanos.
Schopenhauer postulou uma metafísica na qual toda a realidade sensível é sustentada por uma única essência indiferenciada, a Vontade. Todas as coisas que podemos perceber através dos sentidos e de nossa instrumentação científica são, para ele, manifestações individuadas dessa essência única. A Vontade está por trás de todos os fenômenos do universo físico, incluindo cada um de nós. Podemos percebê-la em nós mesmos, através da introspecção de nossas sensações e sentimentos, através da maneira como movemos nosso corpo, nossos membros, como ato de nossa vontade. Estendendo o entendimento alcançado através dessa introspecção para as outras representações, Schopenhauer afirma que o princípio metafísico de toda a existência é a Vontade.
Não se trata aqui de uma Vontade consciente, dotada de inteligência e propósito, mas uma força cega, bruta e sem direção, uma metafísica quase que naturalista. O alicerce ou motor por trás da existência dos fenômenos não é um Deus antropomórfico, mas uma sede de manifestação alienígena ao humano, que se individua primeiro nas ideias platônicas universais e, depois, nas incontáveis manifestações físicas e materiais, das forças mais básicas da natureza, como a gravidade, até os animais mais complexos. É neste aspecto físico da realidade que nós nos encontramos, perdidos, buscando algo que dê sentido a todo esse caos que nos cerca. Enquanto buscamos algo que nos diga que a nossa dor não é em vão, ocupamos nosso tempo e nossa mente com diversas atividades, entretenimentos e justificativas.
Nada garante que Schopenhauer esteja correto sobre a realidade. Talvez não haja nada que sustente o universo físico. Talvez o universo físico seja tudo aquilo que há e buscar algo que o fundamente para além da física seja uma busca tola. Como metáfora, contudo, dificilmente se chega mais perto de uma descrição da realidade do que a metafísica da Vontade. Ao vermos as forças da natureza criando e destruindo estrelas, ao vermos os animais se devorando uns aos outros num eterno teatro de dor, a ideia de uma Vontade que tem como único propósito a própria objetificação fica escancarada.
Porém, o homem não se conforma com essa possibilidade ou com essa metáfora. Nem mesmo aqueles que sustentam tal metafísica conseguem vivenciar diariamente suas consequências. O próprio Schopenhauer jamais se tornou um asceta, algo que sustentou ser o mais correto a se fazer em sua ética.
Ainda que aceitemos que a vida não tenha um propósito maior além da perpetuação da Vontade, é duro nos abstermos dos assuntos da vida, principalmente dos dramas da nossa espécie. É dentro desse contexto que cito um influenciador famoso chamado Bruno Aiub, conhecido pelo apelido de “Monark”. Famoso por defender clichês políticos, econômicos e culturais associados ao libertarianismo de direita e o conservadorismo, há alguns meses atrás, em junho de 2022, Aiub escreveu o seguinte numa de suas redes sociais:
Eu fico pensando porque a gente se importa tanto em sobreviver se no fim vamos morrer, porque lutamos tanto para experienciar tanta tristeza? Sem Deus nada faz sentido.[2]
De certa forma, ele está certo. As tentativas ao longo do século XX de, em nome do progresso, expurgar as religiões de determinadas sociedades que viviam sob regimes pós-revolucionários, além de tirânicas e violentas, foram fracassadas justamente porque, no final das contas, apenas o progresso humano e material jamais foi capaz de acabar com a sede que temos de um sentido maior para nossas existências. O mesmo ocorreu no mundo capitalista, que comercializou tudo, até mesmo a fé, expulsando o mistério sagrado de seu meio. A marca daqueles que não entendem isso é a crença exacerbada na ideia de que nós somos capazes de facilmente criar nosso próprio significado, muito comum entre adeptos do chamado neo-ateísmo.
O problema de Aiub e de todos que pensam como ele não é afirmar coisas como “sem Deus a vida não tem sentido” ou — abarcando também religiões que não possuem a figura de um criador, como o budismo — “sem religião a vida não tem sentido”. O problema é outro. Sim, é quase que certo que, na ausência de Deus, nada faz sentido, pelo menos no que diz respeito a ausência de um significado cósmico satisfatório que faça todas as vidas valerem a pena. O problema é que talvez seja só isso mesmo que temos.
Voltando à filosofia de Schopenhauer, ainda que ela possua uma metafísica, essa não é uma metafísica da razão, ela não provê sentido algum, justificativa alguma. Ela apenas (supostamente) explica o mundo. Ela tenta explicar até mesmo a atitude ética dos monges de se desapegar do mundo. Mas, levando em conta a nossa eterna vontade de perpetuação e crescimento, em si, essa metafísica não nos dá um alicerce satisfatório para vivermos, sermos frutíferos e nos multiplicarmos. Não temos como acordar, olhar no espelho e sorrir contentes e de bem com o mundo se a realidade é como Schopenhauer a descreve. A realidade tem chão em sua filosofia, sim, mas há um niilismo quando se trata de destino: não há nenhum.
Apesar de Schopenhauer propor uma metafísica, ela é ateísta, assim como no caso de algumas religiões orientais, como o já mencionado budismo. Contudo, para aqueles que pensam como Aiub, tanto faz uma metafísica ateísta e o total niilismo, não apenas existencial, mas moral. É preciso haver um ser antropomórfico que nos criou com carinho e planejamento, que possui um plano cósmico para nós, para que a vida faça sentido para essas pessoas. Elas não se conformam com a realidade de que estão sozinhas, de que isso é tudo aquilo que há. Na ausência dessa divindade particular que se importa pessoalmente com cada um de nós, só resta a eles o desespero.
Em certa medida, todos nós somos inconformados, até mesmo os rejeitadores do devir. Afinal, ninguém pediu para estar aqui, para, nas palavras de Aiub, “experienciar” tanta tristeza. A diferença está em como se encara essa inegável e brutal realidade. Para piorar, muitos negam que a realidade sequer seja permeada por tanta tristeza. Mas, para quem não nega o óbvio, há basicamente dois caminhos. Há o caminho da ilusão, seja ela coletiva ou particular, no qual o inconformado mergulha na fantasia para aguentar a dor. E há o caminho do reconhecimento da realidade. Em ambos os casos é possível “aceitar”, no sentido vulgar da palavra, que os estados negativos são um vasto oceano em comparação com os positivos. A diferença está na forma em que essa aceitação se dá.
O iludido, inconformado com a dor e o silêncio do universo que não se importa com suas súplicas, aceitará a realidade drogando-se com fantasias. Nesse aspecto, estão juntos o mais fanático dos religiosos fundamentalistas e o descrente que abraça o absurdo criando seu próprio significado.[3] A fantasia pode ser herdada de uma coletividade ou pode ser inventada. O fundamental é que há uma tentativa de criação de valores positivos para enfrentar os atritos inerentes à existência, incluindo sua falta de sentido.[4] Em contraposição à ilusão, há a rejeição do devir, que também pode se dar de diversas maneiras. Ainda que participe do mundo, o rejeitador viverá no automático, anedônico talvez, conformado em existir como se estivesse em cima de trilhos, sem ter como escapar.
Embora ambos possam ser vistos como inconformados, há uma diferença no mínimo qualitativa entre a religiosidade de Aiub e a vida de um monge que medita sobre a visão beatífica ou sobre o nirvana — e aqui a diferença entre a visão beatífica e o nirvana realmente não interessa, pois ambos os monges cristãos e budistas buscam uma transcendência e entendem a impermanência do devir. Ambos possuem uma crença ascética que enxerga este mundo como um lugar de sofrimento a ser deixado para trás, em oposição às religiões otimistas que rejeitam qualquer tipo de ascetismo.
Também há uma diferença entre Aiub, que justifica o devir como plano divino, e a rejeição desse devir pela filosofia negativa. O que Aiub quer é algo que justifique o mundo, que diga que ele é bom, apesar dos pesares. O que monges e filósofos negativos percebem é que isso não é verdade, ainda que alguns monges populares apareçam sempre sorrindo e dizendo que a vida é bela.
Ao palestrar sobre o modelo transparente de consciência de si, o filósofo alemão Thomas Metzinger descreveu as vantagens biológicas que a auto-ilusão proporciona não apenas à nossa espécie, mas a todas espécies de animais dotados de algum tipo de consciência:
De certa forma [...] o modelo transparente de consciência de si é uma das invenções mais nojentas da mãe natureza, porque ele força um organismo a [...] irrevogavelmente apropriar suas próprias dores, necessidades, medos e [...] impulsos. Eles não podem se distanciar. Nós não podemos nos separar de nenhum desses estados internos. Porque eles são transparentes, eles não são apenas fome ou ciúmes ou tesão. Eles são meu tesão, minha fome, meu ciúmes, e eles são reais. Se há algo real, é a dor, por exemplo. Ela é real. [...] Ela gruda animais à lógica de sobrevivência de uma forma bem nojenta ao criar não apenas alegria e prazer e recompensa, mas também sofrimento. E talvez seja um acidente evolucionário que algo como nós apareceu, por diversas razões, mas também porque (pelo menos) alguns de nós nos comportamos estranhamente. Ao invés de tentar ter filhos, alguns de nós entendem o processo como um todo, e isso não deveria ter acontecido [...] Ou [...] raspam suas cabeças e se tornam monges e não têm mais filhos. Nenhum animal faz algo do tipo. Eu [...] penso que algo que muitos de nós reprimimos é que a evolução da consciência neste planeta, uma maneira de vê-la é também enxergar [...] que ela é um expansivo oceano de sofrimento e confusão e aprofundamento [...] Muitas coisas acontecem que não são de fato engraçadas, como a evolução de predadores. Por que deveria haver a evolução de animais que possuem (como todos nós) a transparente vontade de sobreviver e a única maneira de fazerem isso é sendo, como o filósofo Schopenhauer disse, o cemitério de centenas de outras criaturas sencientes? [...] Alguns naturalistas têm a tendência de glorificar o processo da evolução [...] é uma grande verdade que ela é o maior show da Terra. Mas esse show tem dois lados. [...] O modelo da auto-consciência [...] se tornou melhor e melhor com a evolução: nós conhecemos nosso corpo melhor, nós podemos fazer a introspecção de mais estados cerebrais. Mas também pode ser demonstrado que há uma evolução da auto-ilusão. [...] ter modelos de si com conteúdo falso é bastante adequado. [...] Darei exemplos simples: você pode mostrar que todos os pais diretamente, não apenas cognitivamente, veem suas crianças como mais bonitas e inteligentes que todas as outras. Houve um estudo famoso nos anos 70, se você perguntasse para professores universitários americanos se eles pensavam que eram medianos ou acima da média, 96% deles tinham a firme convicção que estavam acima da média em suas conquistas. Todos eles sabiam que isso não pode ser verdade [...] Há pesquisas começando sobre [...] comportamento agressivo de animais: é bom se você quer [...] arrumar briga com alguém, ou impressionar alguém, que você entre num estado de auto-ilusão em que, por um tempo, você realmente acredite ser mais forte que aquele cara [...] Há uma nova tendência científica em desenvolvimento que mostra que a auto-ilusão é algo que não apenas protege você (negando coisas que você não quer saber, fracassos passados), mas também é uma estratégia de agressão. [...] Muitas pessoas têm crenças que nós sabemos serem falsas. Por exemplo, que crianças nos tornam felizes. Não é verdade. [...] Se você colocar eletrodos para dar choque nos braços das pessoas e pedir para elas responderem: “como você se sente agora, feliz ou infeliz?” e fizer isso com pessoas que não têm filhos, é bastante claro que pais são na maioria das vezes infelizes e estressados. Mas se você entrevistá-los, há uma robusta descrição de que suas vidas se tornaram mais significativas e felizes desde que tiveram filhos. É claro que essas formas de ilusão seriam um trato evolucionário bem sucedido. Essas pessoas foram nossos ancestrais. [...] Pessoas que se tornaram monges e não tiveram filhos, elas não foram nossos ancestrais.[5]
Como Metzinger dá a entender, a questão que ocorre com nós, Homo sapiens, é que muitos indivíduos de nossa espécie conseguem enxergar para além das ilusões, até mesmo aqueles que são afeitos ao auto-engano, como Bruno Aiub. Mas, entre os que são capazes de enxergar o maquinário por de trás do teatro da vida, especulo que poucos o rejeitem. Ao que parece, a atitude predominante é se tornar inconformado com a consciência que se tem da ilusão e não com as dores do mundo: o alvo são aqueles que apontam as ficções que criamos para encobrí-las. Por isso, seres como Aiub ressentem qualquer um que questione ou negue as ilusões propagadas através dos séculos, em especial a ilusão teológica dos que acreditam que este mundo é uma obra perfeita de Deus. É do ressentimento do crente que enxerga o mundo como um lugar de realização do humano que vem o antagonismo para com aqueles que não apenas aceitam que “sem Deus nada faz sentido”, mas tiram disso a consequência da rejeição. Verdade seja dita, até as religiões que praticam o ascetismo não enxergam a descrença com bons olhos, não importando se essa descrença rejeita ou abraça o mundo do devir. Não é como se monges budistas e cristãos aprovassem a descrença comum entre filósofos do pessimismo, muito embora estes rejeitem o mundo tanto quanto eles. Apesar disso, sempre haverá uma admiração para com as religiões que endossam a ascese entre descrentes que rejeitam o devir: a admiração ao hinduísmo, budismo, gnosticismo e cristianismo monástico é clara em Schopenhauer e Cioran.[6], [7] O mesmo não será necessariamente verdade entre descrentes que aceitam a existência com todas as suas tragédias, como Nietzsche, que na Gaia Ciência escreveu uma das mais famosas afirmações do devir. Lá ele afirma que caso um demônio nos dissesse que teríamos de viver nossas vidas da mesma maneira de novo e de novo, eternamente, ao invés de amaldiçoá-lo — como incitaria a filosofia de Schopenhauer —, deveríamos responder que nunca escutamos algo tão maravilhoso.[8] A rejeição do devir é para Nietzsche a maior das heresias. Daí sua crítica não apenas ao pessimismo ateu de Schopenhauer, mas também às religiões que praticam a ascese, chamando-as de “religiões pessimistas”.[9] Inconformados com o devir quase todos somos. Religiosos otimistas ou monásticos, descrentes forjadores de sentido próprio ou rejeitadores da ilusão e existência: todos eles iniciaram suas carreiras percebendo que havia algo de errado ou estranho com o real. A diferença está no que cada um fez depois de chegar à conclusão de que a realidade é um mar de lágrimas. O que Aiub e aqueles que pensam como ele são é outra coisa: eles são inconformados com os que não aceitam seu auto-engano.
Referências: 1. SCHOPENHAUER, A. Parerga and Paralipomena. Tradução para o inglês de E.F.J. Payne. Oxford University Press: Oxford, 1974. p. 283-284. (tradução minha para o português) 2. https://twitter.com/monark/status/1540888326047145986 3. Para mais sobre a questão da criação de um significado frente ao absurdo da existência sem sentido, cf. CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record, 2019. 4. Sobre a criação de valores positivos para se defender dos atritos do mundo do devir, cf. CABRERA, J. Mal-estar e moralidade. São Paulo: Editora UnB, 2018. p. 77. 5. https://youtu.be/m2BJvlq91Ss?t=3301 (em inglês, tradução minha)
6. SCHOPENHAUER, A. Capítulo 48: A propósito da doutrina da negação da vontade de vida. In: O mundo como vontade e como representação. Tomo II. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Editora Unesp, 2015. p. 719-754.
7. Para constatar isso, cf: CIORAN, E. Do inconveniente de ter nascido. Tradução de Manuel de Freitas. Lisboa: Letra Livre, 2010.
8. NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Tradução de Paulo de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 230.
9. NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano. vol. 1. Tradução de Paulo de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2000. p. 66-67.
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